POSTAGEM 23
LAURENTINO GOMES
ESCRAVIDÃO VOLUME 1
Depois de receber diversos
prêmios e vender mais de 2,5 milhões de exemplares no Brasil, em Portugal e nos
Estados Unidos com a série 1808, 1822 e 1889, o escritor Laurentino Gomes
dedica-se a uma nova trilogia de livros – reportagem, desta vez sobre a
história da escravidão no Brasil. Resultado de seis anos de pesquisas e
observações, que incluíram viagens por doze países e três continentes, este
primeiro volume cobre um período de 250 anos, do primeiro leilão de cativos
africanos registrados em Portugal, na manhã de 8 de agosto de 1444, até a morte
de Zumbi dos Palmares.
Entre outros aspectos, a obra
explica as raízes da escravidão humana da antiguidade e na própria África antes
da chegada dos portugueses, o início do tráfico de cativos para as Américas e
suas razões, os números, os bastidores e os lucros do negócio negreiro, além da
trajetória de alguns de seus personagens mais importantes, como o Infante Dom
Henrique, patrono das grandes navegações e descobrimentos do século XV e também
um dos primeiros grandes traficantes de escravos no atlântico.
Esta é uma história de dor e
sofrimento cujos traços ainda são visíveis atualmente em muitos dos locais
visitados pelo autor, como Luanda, em Angola, Ajudá, no Benim, cidade Velha em
Cabo Verde, Liverpool, na Inglaterra, e o cais do Valongo, no Rio de Janeiro.
Os dois volumes seguintes, a
serem publicados até as vésperas do bicentenário da independência Brasileira,
em 2022, serão dedicados ao século XVIII, O AUGE DO Tráfico de escravos, e ao
movimento abolicionista que resultou na lei Áurea de 13 de maio de 1888,
chegando até o persistente legado da escravidão que ainda hoje assombra o
futuro dos brasileiros.
informações extras
A relação contraditória do Brasil com a África
tem profundas raízes históricas e pode ser observada ainda nos dias atuais no
próprio continente africano. Os primeiros soberanos a reconhecer a
independência brasileira, em 1822, foram dois reis africanos: o obá Osenwede,
do Daomé (atual Benim), e o ologum Ajan, de Lagos (hoje cidade da Nigéria).*
Eram ambos grandes exportadores de escravos. Na direção oposta, em 11 de
novembro de 1975, o Brasil tornou-se o primeiro país a reconhecer Angola como
um país independente, decisão que causou surpresa, levando-se em conta que o
novo país nascia sob a bandeira marxista do Movimento Popular de Libertação de
Angola (MPLA), enquanto os brasileiros viviam sob uma ditadura militar
inaugurada em 1964 com o pretexto de combater o comunismo
“O Brasil foi o maior território escravista do
hemisfério ocidental por quase três séculos e meio. Recebeu, sozinho, quase 5
milhões de africanos cativos, 40% do total de 12,5 milhões embarcados para a
América. Como resultado, é atualmente o segundo país de maior população negra
ou de origem africana do mundo.
Os afrodescendentes brasileiros, classificados nos censos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) como pretos e pardos, somam hoje cerca de 115 milhões de pessoas, número inferior apenas à população da Nigéria, de 190 milhões de habitantes, e superior à da Etiópia, o segundo país africano mais populoso, com 105 milhões.
O Brasil foi também a nação que mais tempo resistiu a acabar com o tráfico negreiro e o último a abolir oficialmente o cativeiro no continente americano, em 1888 — quinze anos depois de Porto Rico e dois depois de Cuba”.
Os afrodescendentes brasileiros, classificados nos censos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) como pretos e pardos, somam hoje cerca de 115 milhões de pessoas, número inferior apenas à população da Nigéria, de 190 milhões de habitantes, e superior à da Etiópia, o segundo país africano mais populoso, com 105 milhões.
O Brasil foi também a nação que mais tempo resistiu a acabar com o tráfico negreiro e o último a abolir oficialmente o cativeiro no continente americano, em 1888 — quinze anos depois de Porto Rico e dois depois de Cuba”.
O tráfico de africanos escravizados no Brasil
começou por volta de 1535, algumas décadas depois da chegada da esquadra de
Pedro Álvares Cabral à Bahia, em 1500. O objetivo inicial do comércio de gente
era fornecer mão de obra para a indústria do açúcar no Nordeste, a primeira
importante atividade econômica colonial, mas rapidamente se propagou por todos
os segmentos da sociedade e da economia.
Três séculos mais tarde, na época da
Independência, praticamente todos os brasileiros livres eram donos de escravos,
incluindo inúmeros ex-cativos que também tinham seus próprios cativos. A
presença de africanos nas ruas e lavouras brasileiras surpreendia os viajantes
que por aqui passavam.
No interior do país, eram agricultores, tropeiros,
marinheiros, pescadores, vaqueiros, mineradores de ouro e diamante, capangas e
seguranças de fazendas. Nas cidades, trabalhavam como empregados domésticos,
sapateiros, marceneiros, vendedores ambulantes, carregadores de gente e
mercadoria, açougueiros, entre muitas outras funções. A escravidão é um
fenômeno tão antigo quanto a própria história da humanidade.
No mundo inteiro, desde a mais remota Antiguidade,
da Babilônia ao Império Romano, da China Imperial ao Egito dos Faraós, das
conquistas do Islã na Idade Média aos povos pré-colombianos da América, milhões
de seres humanos foram comprados e vendidos como escravos. Provinham de todas as
regiões, raças e linhagens étnicas, incluindo eslavos (designação que originou
a palavra “escravo”) de olhos azuis das regiões do Mar Báltico.
A descoberta
e a ocupação de um novo continente pelos europeus na virada do século XV para o
XVI, porém, adicionaria ingredientes inteiramente novos a essa história.
Nada foi tão
volumoso, organizado, sistemático e prolongado quanto o tráfico negreiro para o
Novo Mundo: durou três séculos e meio, promoveu a imigração forçada de milhões
de seres humanos, envolveu dois oceanos (Atlântico e Índico), quatro
continentes (Europa, África, América e Ásia) e quase todos os países da Europa
e reinos africanos, além de árabes e indianos que dele participaram
indiretamente.
Além disso,
redesenhou a demografia e a cultura da América, cujos habitantes originais, os
indígenas, foram dizimados e substituídos por negros escravizados. Até 1820,
para cada branco europeu que aportava no continente americano, chegavam outros
quatro africanos cativos.
Também, pela primeira vez, escravidão se tornou
sinônimo da cor de pele negra, origem da segregação e do preconceito racial que
ainda hoje assustam e perturbam a convivência entre as pessoas em muitos
países, caso do Brasil e dos Estados Unidos.
Até meados do século XIX, com exceção dos
próprios cativos, quase todos os demais seres humanos estiveram envolvidos,
participaram ou lucraram com o tráfico negreiro, incluindo reis e chefes
africanos, que forneciam escravos para seus parceiros europeus.
Na Europa, o
negócio do tráfico negreiro nunca foi restrito aos países mais ativos na
colonização da América, caso de Portugal, da Espanha e Inglaterra. Entre os
demais participantes, estavam os alemães, os italianos, os suecos e os
dinamarqueses
A
Inglaterra, baluarte do abolicionismo no século XIX, fora a maior traficante de
escravos no século anterior. Por volta de 1780, os ingleses transportavam em
média 35 mil cativos por ano da África, numa frota de aproximadamente noventa
navios negreiros.
O primeiro grande traficante inglês, John Hawkins, tinha como
sócia ninguém menos do que a rainha Elizabeth I, a mesma soberana que foi a
mecenas do poeta William Shakespeare.
Fernando, rei da Espanha, chamado de
“Atleta de Cristo” pelo papa Alexandre VI, assinou o primeiro assiento, alvará
de licença para o transporte de escravos em larga escala para o Império
Colonial Espanhol na América.
Hoje, parece inconcebível que algo de tamanhas
proporções tenha ocorrido. A história, porém, demonstra que, para os europeus,
a ideia de que a escravidão seria inaceitável do ponto de vista moral
desabrochou apenas no finalzinho do século XVIII, com o nascimento do
abolicionismo britânico.
“Antes disso, a compra e a venda de seres humanos eram
tão comuns e naturais quanto o comércio de quaisquer outras mercadorias e
produtos”, observaram os historiadores David Eltis e David Richardson.
“A
participação no tráfico negreiro no Atlântico até o século XIX era definida
pela oportunidade, e não pela moralidade.” Cabe acrescentar que a abolição
do cativeiro na América não significou o fim da escravidão em outras partes do
mundo.
Até recentemente, diversos Estados ainda mantinham a instituição. Os
últimos a aboli-la legalmente foram a Etiópia, em 1942; o Marrocos, em 1956; a
Arábia Saudita, em 1962; e a Mauritânia, em 2007.
Em resumo, a escravidão
ainda existia e era oficialmente tolerada até pouco mais de uma década atrás,
neste mesmo século XXI, quando a imensa maioria dos seres humanos hoje vivos já
tinha nascido.
Estima que existam, hoje, mais escravos no mundo do
que em qualquer período durante os 350 anos de escravidão africana na América.
Seriam 40 milhões de pessoas vivendo nessas condições — ou seja, mais do que o
triplo do total de cativos traficados no Atlântico até meados do século XIX.
Segundo os dados da mesma instituição, cerca de 800 mil pessoas são traficadas
internacionalmente ou mantidas sob alguma forma de cativeiro, impossibilitadas
de retornar livremente e por seus próprios meios aos locais de origem.
Nada
disso é surpreendente, considerando-se o alto índice de pobreza prevalente no
planeta: calculase que, em todo o mundo, 3,4 bilhões de seres humanos (quase a
metade do total da população) sobrevivam com uma renda igual ou inferior a 3,20
dólares por dia, o equivalente a pouco mais de 12 reais, valor insuficiente
para assegurar as necessidades mínimas de alimentação, moradia e outros
cuidados básicos.
Oficialmente, a escravidão acabou em 1888, mas o
Brasil jamais se empenhou, de fato, em resolver “o problema do negro”, segundo
expressão usada pelo próprio Nina Rodrigues. Liberdade nunca significou, para
os ex-escravos e seus descendentes, oportunidade de mobilidade social ou
melhoria de vida. Nunca tiveram acesso a terras, bons empregos, moradias
decentes, educação, assistência de saúde e outras oportunidades disponíveis
para os brancos. Nunca foram tratados como cidadãos. Os resultados aparecem nas
estatísticas a respeito da profunda e perigosa desigualdade social no país:
“Durante a
campanha abolicionista que empolgou o país na segunda metade do século XIX, o
pernambucano Joaquim Nabuco dizia que os brasileiros estariam condenados a
permanecer no atraso enquanto não resolvessem de forma satisfatória a herança
escravocrata. Para ele, não bastava libertar os escravos. Era preciso
incorporá-los à sociedade como cidadãos de pleno direito.”
“Escravo” é uma palavra de uso consagrado nos dois
mais importantes dicionários brasileiros, o Aurélio e o Houaiss, onde aparece
como “aquele que, privado da liberdade, está submetido à vontade de um senhor,
a quem pertence como propriedade”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário